domingo, 28 de dezembro de 2008

Rua atravessada

Ainda não vi-te as mãos. Através das nuvens que ficam sobre o chão húmido e despertado, pareces não saber das cortinas fugidias que trazem as tuas mãos pela rua onde estou. Assim, acordo já a sonhar, entre martelos a baterem no bronze do sol da varanda. Não ousas descer as minhas escadas em pessoa. Em vez disso, insistes em sair das paredes, em entrar por toda a casa com toda a ousadia de quem traz lama agarrada aos sapatos.
À noite, deixas o vento comandar as janelas porque calas os dedos. Ficam as árvores a segredar contra os becos e eu fico apertada contra o calor que me isola da solidão. Ou fico a ouvir histórias escritas há tempos no quarto que me adormece. Com a cabeça a tombar, penso em contrário, com o tempo a descontar no passado. Penso no nervoso que me cresce nos pêlos por causa do tempo que não me substitui por toda a parte.
Pela manhã, voltas normalmente a assobiar-me enquanto sinto a corrente de ar gelado a correr entre os lençóis e as brisas sacudidas pelos teus pés que carregam no pedal. Essa insolência matinal poderá entrar em desafio comigo e, por isso, abro-te a porta porque és o único que me visita assim. O único que pega nas gotas do meu corpo e corre à descoberta do céu comigo, cada dia que começa.
Se eu, um dia, pegar nas malas, encerra o portão e todas as ruas. Chamarás a polícia e dirás que silenciei-te. Deixa que me prendam porque hei-de sempre voltar, sentada nas escadas escondidas, a respirar-me contra a tua música. E se cruzar-me contigo não pretendo suspeitar de ti. Por isso, continua de olhos baixos e lacrimejantes e eu andarei rente à parede, com medo da queda no abismo entre os nossos passos e os vulcões que explodem dos teus dedos. Pedirei, contra a fachada do prédio, para tocares mais umas músicas porque ainda não terei de ir para a vida que se passa lá fora e para encher-me de manhã que chegará à noite, onde me aprisiono em mim e naquilo que não existe.
Da próxima que te escrever, mesmo que não compreendas que o faço, traz o teu piano para a rua, quando chover, para ensopar-me nele e misturar-me na água que lava a tinta preta e se entranha na madeira disfarçada. Também poderemos viajar pela cidade em cima do piano e descermos as escadas do metro em correria cinematográfica, sempre com as teclas a moverem-se, em preto e branco. Poderíamos guiar o rio para longe, onde não há vergonha estampada em grades verdes e verticais.
Acho que vai nascendo outro de ti, por cima de mim, onde imensas músicas desfilam pelas paredes e escorregam pelo tecto para me pingar na cabeça. Como infiltração. É mais desgovernado e menos metódico, mas deixa-se cair pela noite como este fim de tarde que embrenha-se lentamente no escuro, enquanto eu já nada espero da noite.
Hoje fez sol na cave porque tirei, finalmente, os vidros das janelas e deixei que as folhas abandonadas emoldurassem a paisagem. Cada uma delas é como natureza para ser varrida, após este sol que queimará as suas pontas. Os cantos ficaram cor-de-rosa choque e eu fiquei no centro para ofuscar o olhar. Todas as semanas, à mesma hora que marca as dezassete horas, pego nessas folhas podres de água e escondo as unhas negras entre as raízes da árvore para que não haja alguém que me abane e eu caia também, como essas folhas podres de água.
No futuro, se decidirmos morrer em cada música tocada, lembra-te de me levares para o paraíso (ouviste?), mesmo que eu não saiba a linguagem dos teus compassos, mesmo que não saibas a cor de mim. Estaremos sempre nestas horas de manhã, com a humanidade a intrometer-se nos nossos livros, nos nossos dedos, nas nossas faces quentes de esforços, no nosso amor ao som evaporado nesta rua. Se destruírem estes prédios desencaixados, quero que me tirem os tijolos que me fecham para eu poder chorar em liberdade e não ter de me cimentar nunca mais, neste nevoeiro desta cidade que me apaixona à vida. Se atirarem bombas, eu agarro uma e coloco-a perto do coração, a escutar tique-taques e a contar os segundos para a explosão que levará, para o rio, o meu sangue e os restos líricos, feitos de teclas de piano. Brancas e pretas.







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