segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

ApeaDeiro

Tinha deitado as contas erradas sobre a mesa.
O copo meio cheio denotava uma qualquer inquietação que lhe subia pelo corpo. Despejava o copo, enchia a boca. Pela janela fechada, mesmo assim, entravam ruídos misturados e os carris perfuravam os móveis de madeira, o frigorífico e o fogão. Até quando este abuso? O barulho era tão concreto e intenso que o punha louco. Enquanto ele escutava a aproximação, o corpo balançava na cadeira de verga na tentativa de não chocar na vertigem de um comboio em passagem furiosa e apressada. Imaginava a existência do apeadeiro mais longe dali. Talvez tivesse um canteiro, e talvez fosse todo de metal como os de agora. Teria um relógio antigo com ponteiros a menos?
Sentia dores nas pernas e, sentado, o sangue afluía-lhe fortemente pelos músculos, como se estes martelassem a pele. Queria apear-se em descanso, sem saber onde. Era de facto o que importava: não saber para onde, para não ter de pôr avisos na montra e, se quisessem pensar que ele tinha desaparecido, isso não o incomodaria. Sim, estaria desaparecido. Desaparecido dali, dali aborrecido. Estaria omisso do mundo. Estaria noutro apeadeiro ou estação. Mas estas últimas vêm com o ano e ninguém lhes rouba o lugar. Num apeadeiro, poderia andar sobre carris e testar o seu equilíbrio, num apeadeiro qualquer e longe, onde só alguém parasse para não ter de inventar justificações. Só ele e um homem de bigode, desconfiado, mas pouco ralado.
Com passadas ligeiras, caminhava na cozinha, onde os metais fazem faísca com as facas das rodas em movimento. Da janela, já ouvia um jovem apito que iria entrar por ali adentro e, provavelmente, a música iria deixar de se ouvir e os copos iriam tremer.
Vão entrar gentes rapidamente e ele ficará no mesmo sítio, encostado ao frigorífico, onde possa sentir um fresco.

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